TRAVESSIA
PARNAÍBA / FORTALEZA
O
Aragem
fundeado na enseada do Mucuripe em Fortaleza.
Após
a construção do Aragem, desejei
participar da REFENO, embora este não fosse meu
sonho
específico. Sonho mesmo era construir meu próprio
barco e
velejar por aí, sem compromissos. Mas participar da
REFENO
era chance para fazer uma viagem
costeira com
direito a travessia oceânica. Seria minha
primeira
navegada significativa e nada mais conveniente que a
fizesse integrado a um grupo de velejadores veteranos e
experimentados, contando ainda com o apoio da Marinha do Brasil, que
dá suporte àquele importante evento.
Após
conversar com amigos do meio sobre minha
intenção
de participar da regata, alguns deles aceitaram fazer parte do projeto.
Então nos engajamos nesta verdadeira
aventura, visto que a parte mais difícil não
seria a
regata em si, mas sim os preparativos para ela e a
navegação
até Recife num período nada propício.
De fato,
foram ventos muito
fortes, rajadas imprevistas levantando o mar em
questão de
segundos, ondas na proa o tempo todo. Muitas, lavando o
convés,
íam quebrar nos parabrisas das cabines e chegavam a
passar sobre o teto da pilot
house. O barco batia nos
cavados das ondas em estrondos
terríveis e preocupantes. Ainda por cima, a forte corrente
contrária subtraía boa parte das milhas
avançadas
em
nossos bordos necessariamente longos buscando uma ancoragem a
cada
final de dia. Eu decidira pelos bordos longos e pernoites,
pois
não havia condições de mar
para
navegação noturna, a
não ser que não tivéssemos a
opção
de ancorar. Fazíamos aquela que é a
segunda pior
singradura do Brasil, perdendo
apenas para as regiões sul e sudeste com suas
frentes
frias. E repito o que já disse antes aqui: nossa costa
nordeste,
principalmente no trecho até Cabo do Calcanhar, no
Rio
Grande do Norte, pode ter um céu de brigadeiro soprando
ventos
de tempestade durante boa parte do ano. Infelizmente, não
pudemos antecipar nossa viagem e fomos pegar exatamente o pior
período do ano para descer a costa. Se tudo
corresse
bem, chegaríamos a tempo para a regata. Esta era nossa
expectativa e estávamos otimistas quanto a ela,
porque o barco e tudo o que nele fora instalado
é novo: mastro, velas, estais, motor,
instalações, equipamentos, ferragens, tudo. Mas
não estávamos livres era de Murphy, o
oportunista
passageiro, mostrando que, apesar da
perfeição
aparente, jamais podemos descartar a ocorrência de
possíveis problemas, principalmente quando faltara
um detalhado período de testes e
preparação
para a viagem.
Outro aspecto que eu gostaria
de enfocar são as próprias
condições do Aragem
para esta
viagem. Todos sabem que ele é um barco artesanal,
despojado
e sem requintes de acabamento, embora as técnicas e os
materiais
usados em sua construção nada
fiquem devendo para
similares feitos profissionalmente no mesmo sistema construtivo. Mas
não haveria tempo para um teste de mar, desses que todos os
estaleiros fazem, pondo o barco a navegar por um mês ou mais,
nas
mais diversas --- e adversas --- condições, a fim
de
detectarem falhas e os necessários ajustes. Ficou
acertado
que nosso teste de mar seria valendo mesmo, com o barco
navegando
rumo ao Recife, em um roteiro porto-a-porto
distribuído por três pernas:
Parnaíba/Fortaleza,
Fortaleza/Natal e Natal/Recife. Por causa das
condições
de mar já referidas, haveria pernoites ancorados entre as
três pernas, a fim de se evitarem perigosas
navegações noturnas próximo
à costa, quando
evitaríamos a forte corrente ao largo, mas não os
currais
e pequenos barcos pesqueiros. Também assim teriamos
uma
pausa necessária à
avaliação e conserto dos
problemas que de fato foram aparecendo --- embora, felizmente, nenhum
deles tenha sido de ordem estrutural, pois
confio absolutamente na
obra que realizei. Eram defeitos de funcionalidade, devidos
principalmente à subestimação que eu
fizera das
condições de navegação a
serem enfrentadas,
ainda quando eu, não imaginando que iria
enfrentá-las tão
cedo, usei materiais e
peças que se mostraram ineficientes na
vedação do
convés durante uma dura navegação.
Borrachas e
tampas de
inspeção que não vedaram perfeitamente
e quebra-ondas que deixaram de ser colocados nos devidos
lugares,
quando seriam essenciais em condições
severas de
mar. Então, como era de se esperar, Murphy
pintou e bordou. As bombas
elétricas do porão de proa e do túnel
flutuante
(onde fica o selo mecânico), não funcionaram.
Tivemos que
usar as bombas manuais de esgotamento dos porões dos dois
banheiros
(proa e popa). O próprio selo mecânico do eixo,
que
atendera perfeitamente durante toda a navegação
fluvial
do Aragem
pelo rios Poty, Parnaíba e Igaraçú,
falhou,
deixando inundar-se o porão do motor, justo quando este fora
mais
requisitado: no penúltimo e no último bordo, onde
paradoxalmente rendemos mais devido a melhores
condições
de vento e mar, com o Aragem
navegando
motorsailer
(motor e velas).
Felizmente, ao contrário do ocorrido nas outras
áreas do casco principal, a bomba elétrica ali
instalada
funcionou, esgotando rapidamente o excesso de água
embarcada. Um dos maiores problemas, embora não
fosse de
comprometer gravemente a segurança do
barco nem
da tripulação (pois o barco
é projetado para
flutuar mesmo alagado), porém reduzia
significativamente a
perfomance da navegada, foi a entrada de água em ambos
os flutuadores, principalmente no de bombordo, mais exposto
às ondas na velejada de contra-vento. Teimosamente, e por
gosto
estético, eu fizera as tampas de entrada nos flutuadores
(localizadas próximo a cada borda) com perfis bem baixos. E
não coloquei quebra-ondas (como também
não havia
posto na gaiúta de proa, por onde circula o ar pelo centro
do
barco). Mea
culpa! A
água conseguira entrar por baixo da borda das tampas, apesar
das
borrachas de vedação ali existentes. De novo, mea culpa!
Devia haver um
sistema de apertamento das tampas contra o convés. Enfim,
tudo sendo corrigido pelo caminho, inclusive com a
aquisição de uma bomba manual, dessas para
poço
cacimbão, muito usadas em barcos pesqueiros. E, por fim,
vieram
os dois
últimos --- e piores --- problemas, felizmente já
em
Fortaleza, defronte à barra do Ceará,
à noite,
durante as
manobras de aproximação para ancoragem: o motor
parou de
funcionar. Ficamos só à vela, no vento ainda bem
fraco.
Aí um dos cabos de aço inox do
leme
não resistiu mais à fadiga de tanto dobrar-se
continuamente sobre a curva do quadrante e se rompeu,
forçando-nos a ancorar ao
largo, esperando reboque
(imediatamente provido pela equipe em terra). O problema do
leme
foi solucionado simplesmente substituindo-se a
seção
final de cada cabo, onde existe o atrito e o vergar
constantes, por cabos de poliéster.
Já a pane
no motor e a entrada de água no casco principal ---
descobriu-se
depois --- teve motivo banal: um tufo de papel que
alguém pusera na entrada
do filtro de ar enquanto lavava o motor fora sugado para
dentro e
ficara
ali sem ser notado. A entrada de ar insuficiente
causara o
mau funcionamento do motor, que por isto passara a vibrar
muito
sobre os coxins de borracha. E, é claro, a
vibração excessiva afetava o selo
mecânico,
fazendo-o vasar. Enfim, foram todos problemas
de solução bastante simples, mas que
terminaram
atrasando substancialmente a
travessia e inviabilizando nossa ida à regata.
Certo é que o Aragem,
nesta velejada cheia de
emoções, mostrou mais
uma vez que não é um simples barco de madeira e
fibra,
mas eu diria que ele possui alma igual a nós
humanos, capaz
de mover-se por sentimentos como coragem,
determinação e
senso de dever. Parece até que estava imbuído de
uma
missão que era levar-nos, com segurança, ao porto
seguro.
Basta ver como enfrentou com bravura aquelas
condições
desfavoráveis e só foi render-se, ficando
sem leme e
sem motor, quando já estávamos com apenas 12
metros sob a
quilha e assim pudemos ancorar com segurança até
chegar
ajuda. Agora, imaginem se tivéssemos ficado à
deriva
ainda em alto mar, numa profundidade em que não seria
possível lançarmos âncora e
já era noite.
Foi mesmo uma situação para darmos
graças a Deus e
vivas ao bom e velho Aragem,
o barco
com alma.